terça-feira, outubro 04, 2005

PELO SER COMUM - por Guilherme Isnard

Pelo medo da insegurança, a representação falseada de uma aparência admirável. E aí percebemos, muitas vezes já desnorteados, que tudo pode ficar mais fácil sendo verdadeiramente o que se é.

"... Ele via rostos em filmes, na TV, em revistas e em livros / Ele pensou que algum destes rostos pudesse ser o certo para ele / E através dos anos manteve uma estrutura facial ideal fixa em sua mente / Ou em algum lugar do seu subconsciente / Ele conseguiu, pela força do desejo / Fazer com que seu rosto se aproximasse deste ideal / Ele imaginava que essa era uma habilidade partilhada com várias outras pessoas / Elas também teriam moldado suas faces de acordo com algum ideal / Elas talvez tenham imaginado que suas novas faces / Casariam melhor com as suas personalidades / Ou talvez tenham imaginado que suas personalidades / Forçosamente mudariam para se adaptar à nova aparência / É por isso que as primeiras impressões são quase sempre corretas / Ainda assim, algumas pessoas podem ter cometido erros / Elas talvez tenham chegado a uma aparência que não esteja relacionada com elas / Elas talvez tenham se apegado a uma aparência ideal / Baseadas em algum desejo infantil ou impulso momentâneo / Algumas chegaram até o meio do caminho e então mudaram de idéia / Ele se perguntava se não teria cometido o mesmo erro..."

Esta é “Seen and not seen” (Visto e Não Visto), uma canção do ex-Talking Heads David Byrne, que consta do álbum “Remain in Light” de 1980. Foi ouvindo esta canção há 25 anos que realizei pela primeira vez o ridículo da situação de pretender moldar-me de modo a adequar-me a ideais estéticos e sociais completamente estranhos à minha verdade interior.

Você também já se sentiu assim? Já se flagrou adaptando sua aparência e comportamento às expectativas do seu meio? Aposto que sim. Mas, não se alarme, flexibilidade é condição sine qua non de sobrevivência na selva cínica. Basta ter a consciência de que se está representando este ou aquele papel e cuidar para que a personagem não assuma as rédeas de sua existência. Não que cometamos todos os excessos de um Zelig, mas as vezes é quase impossível resistir a camaleonices.

Na verdade, poucos espíritos podem se dar ao luxo de, deitados no divã de análise, confessarem-se satisfeitos com o equipamento que a genética lhes sorteou. O que se vê por aí mais comumente é a total insatisfação: franzinos sonhando com bíceps, morenas virando loiras, cabelos lisos sendo encrespados e crespos sendo alisados. Enfim, cada um tentando, com os meios ao seu alcance, melhorar o que Deus lhe deu.

As modernas técnicas de cirurgia plástica realizam verdadeiros milagres de recuperação social: Aquela madame que teve os seios irremediavelmente arruinados pela gravidez sente-se a própria fênix ao poder exibir novamente generosos decotes; o rapaz que tem um nariz de tucano como herança étnica despe anos de obsessivos complexos em duas horas de cirurgia. As próteses de silicone tanto moldam novos queixos e bustos como revitalizam virilidades desenganadas. Já a lipoaspiração acaba com os problemas de sobra ou ausência localizada de gordura, permitindo assim novos prazeres a antigos portadores de inarredáveis pneus, culotes e queixos duplos.

Como acabamos de ver, os descontentamentos com a própria aparência são, na maioria das vezes, contornáveis. Se dinheiro não for problema, é claro. Mas e a personalidade? Aonde se implanta charme? Qual a prescrição médica que assegura uma simpatia cativante? Qual pronto-socorro psíquico vende, ainda que no câmbio negro, brilho intelectual e autoconfiança? Todos estes produtos, mesmo sendo cotados como de primeira necessidade social, infelizmente não são encontráveis no mercado.

Uma coisa é o que você pensa que é, outra o que você pensa que os outros acham que você é. Dessa dicotomia nasce o que você pensa que deve/gostaria de ser.

Vi outro dia "The Power", um filme em vídeo com o Richard Gere no papel principal. Ele representava um especialista em imagens de políticos. Colocava a serviço destes todo o arsenal tecnológico midiático, transformando azarões em incontestes vencedores. Até que, decepcionado com a máquina de manipulação criada por ele próprio, resolveu abrir o jogo com um candidato que já tinha sido devidamente embrulhado para os eleitores, incitando-o, contra todas as regras anteriores, a ser simplesmente autêntico, um ser comum.

O desempenho magnífico deste candidato liquidou os interesses escusos de outros aspirantes ao senado americano. No seu pronunciamento, o candidato disse que essa era uma vitória da verdade, do ser comum sobre os "média wizards" (mágicos da mídia). Ele venceu porque finalmente pode oferecer a si próprio.

Lindo né? Mas nem sempre é assim. Na próxima vez que sair a noite experimente reparar o quanto as verdades pessoais se ocultam atrás de personas. Ta certo que "... A vida é um palco iluminado...” etc. Mas será que é mesmo necessário representar sempre? Será que só podemos ser nós mesmos no aconchego do lar? É mesmo tão difícil assim ser autêntico socialmente?

Parece que está na hora de deixar as certezas interiores ignorarem os signos exteriores, porque o aperfeiçoamento da capacidade de adaptação transforma os indivíduos em não-pessoas. Quanto melhor eles jogam esse jogo, mais deixam de existir como instinto de vida original - A morte pela especialização.

É bem possível que exista um equilíbrio entre o ator que todos somos e aquilo em que realmente acreditamos. É preciso conciliar os princípios pessoais com seu personagem social ou então cair inapelavelmente no ridículo. Ta certo que a criança encapetada faça cara de anjinho pra ganhar o que quer. O que ela não pode é continuar assim a vida toda.

Então chega de fingir orgasmos, falsear relações e camuflar sentimentos. Mesmo porque é muito fácil supor frágeis e tímidos espíritos atrás de inexpugnáveis e aparentemente determinadas personalidades., assim como reconhecer corações sensíveis e românticos sob atitudes donjuanescas e sedutoramente fatais. A melhor defesa é o ataque. Melhor que não fosse mais.

"...Não se esconda atrás de máscaras pra tentar se proteger / As verdadeiras intenções todos sempre vão saber..." (“Os Olhos Falam” - ZERØ - 1985).

A moral da estória é: na carne dá pra se dar um jeitinho, mas com a sua cabeça é melhor você se acostumar, é ela que vai lhe acompanhar, por mais que você insista em perdê-la, até o fim da sua vidinha.

Eu sinto muito por isso. Ou não.