quarta-feira, novembro 24, 2004

APRENDIZ DO AMOR

Por Guilherme Isnard para HV nº3 - agosto/setembro 1986

As histórias mudam um pouco, mas é tudo o mesmo sonho. O agente catalisador das relações continua sendo o amor. Não a palavra, mas o sentido. O fato é que a vida opera sem anestesia.

Do começo dos tempos até quase a metade do século XX, a relação mestre/pupilo era explícita e muito comum: Um homem possuidor de um especial talento ou conhecer deveria cuidar de que ao terminar-se tivesse a certeza de haver perpetuado o próprio espírito em gerações que o sucederiam, propalando e aperfeiçoando aquele seu "saber".


A sociedade, reestruturando-se no pós-guerra, impôs ao indivíduo um ritmo tal de competitividade que praticamente o convenceu de que a humildade do "aprender" era uma fraqueza passível de ser explorada como tal por qualquer pessoa a quem ele confessasse ingenuamente sua ignorância. Salve-se-quem-puder foi a única coisa que aprenderam então. Até aí, o homem maduro transmitia sua especialidade a um/a jovem aprendiz sob uma aura de honesta, profunda e leal amizade. Hoje a história é bem outra.

No mundo do tele-catch moderno!
Os historiadores estão preocupadíssimos em detectar os primeiros sintomas que permitiriam supor uma próxima onda. Todos especulam qual será o movimento seguinte, o que vai alterar agora os hábitos, normas, padrões e costumes. Afinal, o que vem depois do pós-moderno?!?!

Mesmo parecendo reacionário eu ousaria arriscar, na condição de leigo, que o pós-moderno não passou de uma overdose leviana do moderno, espécie de porre atípico das vanguardas que, refeitas da conseqüente ressaca, voltariam ao labor de desbravar insanamente a modernidade, essa esfinge que persiste em nos desafiar com uma multidão de misteriosas possibilidades. Temeroso de haver abusado de vosso tempo e paciência, descuIpo-me pelo desvio, por um momento deixei-me levar peIas emanações do incenso.

En garde! Touché!
No mundo do telecatch moderno (agora sim, faz sentido) os sentimentos elevados parecem as camisetas suadas que os boxeadores se apressam a despir antes do primeiro round. A confiança perde lugar para a guarda fechada e o jab rápido. Nesses tempos de prontidão, o aprendizado não mais se processa naquela esfera romântica, o mestre passa a ser um adversário a sobrepujar. Vale chute no saco, tesoura voadora, takles e o escambau. Até o proibido soco inglês é tolerado na tentativa de subjugar quem "sabe" e que por essa qualidade, ilusoriamente, "é" ou "pode" mais.

A subversão a este estado de coisas existe nas poucas amizades sinceras e reside basicamente num tipo singular de afeição e cumplicidade, vulgarmente conhecido por amor. Para seu governo, o bom e velho amor continua sendo o agente mais eficaz na polinização do saber, portanto fundamental como catalisador das relações filho/pai, homem/mulher, aluno/professor, humanos/Deus. Acontece, não sei se por obra do Plano Cruzado, que o amor sumiu do mercado e, ao que parece, a maior associação contra a possível extinção desta rara casta de sentimento é a paternidade. .

O amor é a subversão.
O tráfego inversamente proporcional de amor entre os pais e seus filhos costuma superar qualquer terremoto cultural. O bicho homem preserva e protege como uma fera a sua cria, até que a julgue apta a enfrentar a "selva". Metáforas à parte, há milênios que a pseudo-imortalidade do indivíduo se realiza no sucesso e na sobrevivência do seu próprio sangue, os filhos que concretizam os sonhos e expectativas paternas, e assim por diante. Preste bem atenção, este é um "micro" que curiosamente espelha o "mega", Deus e sua esperança na continuidade da espécie humana.

Filhos são aprendizes naturais. Antenas parabólicas a quem o mundo parece sem limites. As seduções se multiplicam nas telas de TV. No meu ninho ou meio como queiram, o convívio com a realidade da espécie era restrito a uma ridícula amostragem da população mundial. Aproximadamente trezentas pessoas entre parentes, colegas de estudos e amigos de folguedos. Hoje o meu pequeno Daniel senta em frente ao vídeo, liga um botão e o meio dele é o mundo inteiro. Nada menos do que isto. Como é que eu, mero pai sem os poderes de Greyskull, vou organizar toda essa zona na cabeça da criança? Help!

Tiro ao alvo ou solfejo?
E olhe que comecei super bem, fiz esse moleque com muito amor. O parto (método Leboyer na Clínica Tobias) quem fez também fui eu. Orientado por um obstetra, cortei o cordão umbilical, aspirei todas as melecas e o acariciei muito enquanto ele se acostumava com a novidade, deitado de bruços na barriga da mãe. Mas e daí para frente, como faz? Na falta de uma escola para jovens pais, fui estudar na vida o melhor jeito de preparar o "meu garoto". Seis anos depois estou vivendo a crise de estar completamente assombrado com o rumo das coisas, com o desrespeito por tudo e por todos que parece ser a máxima do homem moderno. Para que serve tanto desamor?

Você já viu bundinha de recém-nascido? Parece uma ameixa seca cor-de-rosa e enrugadinha, dá uma grande vontade de morder, mas o tempo voa e agora eu sei... O baixinho está virando um grandão e o que é que eu vou ensinar para esse meu filho? Será que acabo com as ilusões infantis de amor e paz? Será que o matriculo numa academia de caratê em vez de levá-lo para ver Fantasia? Será que um programa de treinamento em táticas de guerrilha urbana não serão mais útil do que arcaicos conceitos morais? E os nobres códigos de conduta? O bom caráter? A generosidade? A retidão? Afinal, quem vai ganhar, o bem ou o mal?

Sobreviver à vida.
Eu, com a responsabilidade de pai, morro de medo de estar criando com amor e doçura, ensinando integridade e bondade, uma criança que pode estar destinada a viver num mundo onde resolve a parada quem sacar mais rápido uma arma mortal. Eu não sei bem por que, mas os anos passam e todo o lixo fica cada vez mais evidente. Tomara que não seja porque estamos todos apodrecendo.

Ainda é tempo! O meu Daniel merece um planeta bem melhor do que este, todos os filhos merecem. Quem sabe talvez um esforço concentrado resolvesse o problema. Sei lá, a gente podia todos juntos na Terra inteira, gritar socorro bem alto, cada um em sua língua, humilde e fervorosamente num só fôlego. Que tal?

Só torço para que o remédio não seja outro dilúvio, mas se for tudo bem, eu me resigno. Deus é o único que parece saber o que faz. Diante Dele, tolinhos somos todos nós: Mestres e alunos, pais e filhos, maridos e esposas, crentes e ateus. Apenas jovens e boquiabertos aprendizes.

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