segunda-feira, outubro 11, 2004

JOVEM GARBOSO

por Guilherme Isnard para HV n°4 – novembro/dezembro de 1986

Meu nome é Narciso. Sou alegre, comunicativo, discreto, agradável, charmoso, sutilmente engraçado, determinado, inteligente e, modéstia à parte, muito gostoso.

Era uma vez...Os feios que me perdoem, mas só não se atrai irresistivelmente pelo espelho quem experimenta profundo desprazer ao se lembrar do reflexo. Assim mesmo, somente em casos de desesperadora fealdade, porque essa maravilha de adaptação que é o ser humano é capaz de encontrar ângulos favoráveis em qualquer Demoiselle D'Avignon.

A beleza é um conceito abstrato e como tal indefinível, variando incrivelmente de pessoa para pessoa. Cada indivíduo possui particulares subsídios culturais, sociais e étnicos para construir o seu próprio padrão do belo. Que acaba, na maior parte das situações, transgredindo o padrão standard da beleza consensual. Apesar de neste modelo estarem embutidas variantes tais como belezas exóticas, insossas, agressivas etc... Já que as discussões estéticas acabam chafurdando o mesmo pântano sem fundo das polêmicas políticas e religiosas, é melhor desarmarmos os nossos cérebros analíticos e render-nos encore une foi à boa e, às vezes, infalível sabedoria popular: A beleza está nos olhos de quem vê. Mesmo quando quem vê não faz a menor idéia do quê.

Beleza não põe mesa!?
Eu fiz bem em ressaltar a falibilidade dos ditos pop. É claro que uma beleza bem administrada rende os seus dividendos.
Em fugazes carreiras de modelos manequins, assim como na TV ou cinema, ou ainda no trânsito social que lhes oferece facilidades, os “formosos” costumam lucrar popularidade, prestígio e situação, mas ficam muito distantes de uma coisinha chamada respeitabilidade. Por que será? Seria possível que uma das qualidades mais invejadas entre os homens fosse também alvo de tanto preconceito? É paradoxal, mas é real: A sociedade em geral é absurdamente cética em relação ao talento dos belos. Como se a estes "privilegiados" bastasse o prazer encontrado no próprio reflexo para preencher toda uma existência, que por isso mesmo, estaria de antemão condenada à frustração. Caprichos do destino.

Deus se come-se
Todo este preâmbulo se justifica porque me colocaram em situação algo embaraçosa ao me revelarem a pauta desta edição: O NARCISISMO. Não fosse eu a capa do último número e tudo estaria bem, mas acontece que depois desta estréia como cover boy me sinto assim como que envolvido emocionalmente com o assunto. Eu aposto que o leitor criativo poderá facilmente imaginar-me pisando em ovos, de saia justa e salto quebrado. Mas estes e outros são os tais ossos do ofício.

A título de curiosidade, gostaria de dizer que a edição cuja capa estampa este seu esforçado escriba foi, para alegria do departamento comercial da empresa e para minha humilde vaidade, a que mais rapidamente se esgotou em banca. Aos meus fãs, amigos e pacientes leitores, os mais sinceros agradecimentos.
Órra meus, tão vendo? Como é que eu vou falar imparcialmente de narcisismo com a bola cheia desse jeito? Não se comoveram? Então, vamos lá, mãos à obra. Meus amores, perdoem qualquer complacência.

Pelo menos, o mito vocês conhecem, não? Bom, lá vai: Vinha andando despreocupadamente pelo bosque o garoto Narciso quando, não mais que de repente, ao curvar -se para beber num lago, o garboso efebo maravilha-se ao ver-se refletido na lâmina d'água. Loucamente apaixonado por si, mergulha para tentar alcançar-se e, se não me falo (Ops! ato fálhico) a memória, afoga-se.
Que amorzinho vertiginoso e fatal é esse que intriga as civilizações há milênios? Só pra vocês fazerem uma idéia, fui dar uma olhadinha do Dictionaire de Ia Simbologie e encontrei umas vinte páginas falando sobre o nosso colega kamikaze. Foi aí que descobri um consenso entre poetas e filósofos, colocando este mergulho como se ele fosse dado num espelho aberto para as profundezas do eu. Uma interpretação até certo ponto simplista: o mito de narciso seria um símbolo de uma atitude auto-contemplativa, introvertida e absoluta, em resumo: a busca da identidade. Mas vamos deixar a mitologia de lado e passar à pesquisa de campo.

Eu me amo!
Os lindinhos que, ao meu ver, seriam potencialmente narcisistas são, na verdade, extremamente reticentes ao comentar a própria beleza, um tipo de falso pudor, uma espécie de culpa em serem belos (saibam porque no epílogo do preâmbulo). Já entre os, digamos assim, belos não-óbvios, encontrei casos de auto-adoração aguda. O que me permitiu deduzir que existem casos em que a beleza (que, aliás, existe em todos nós) é tão sutil, mas tão sutil, que somente quem a possui é capaz de reconhecer. O que, infelizmente, reduz o círculo de admiradores desse belo "oculto" a um só: ele mesmo.
Narcisismo como medicação? Pode ser, mas não sem contra-indicações.
Ezequiel oportunamente lembrou-me de uma obra-prima narcísica dos anos 50’s, Sunset Boulevard (corra ao videoclube mais próximo!) e Alvim L evocou Gloria Swanson completamente ensandecida, sendo arrastada pela polícia após ter assassinado o marido, dizer fixando a filmadora: "Eu dedico essa minha loucura às pessoas que estão aí no escuro me vendo completamente louca, agora estou pronta para o meu close-up, Mr. De Milles". A Hollywood, Meca dos narcisos, põe o dedo na própria ferida e mostra uma atriz desgraçada pela sorte ser incapaz de, num momento trágico como esse, ter outra preocupação que não para com a adoração que ela supostamente inspiraria aos estarrecidos fãs.

A cabeleira do Zezé!
É claro que entre formosos pudicos e feiosos explícitos existe um amplo espectro de narcisos. É possível classificá-los em dois grupos genéricos: os saudáveis e os maníacos, apesar de que os limites entre eles são tênues. Exemplo: quem dança em frente ao espelho para se "sentir" na roupa é narciso, mas é saudável. Agora, se trocar de roupa mais do que duas vezes, passa para o outro time.
Apesar de ser praticamente impossível aos leigos entender os excessos dos fisicultores, constatamos que algumas profissões induzem ao narcisismo crônico, normalmente por exigir das pessoas uma carga muito maior de auto-contemplação (bailarinos, atores, artistas etc.). Afinal, quem é e quem não é?
Melhor tentar de outro modo: eu, por mero exemplo, me acho o máximo, mas também acho várias outras pessoas "o máximo". Equalizar, otimizando o handicap, é saudável. Demência é se presumir o máximo dos máximos sem admitir outro brilho que não o próprio. Deu-me vontade de fazer uma lista de máximos e péssimos, mas essa não é a hora.

Os fãs de hoje são os linchadores de amanhã.
Será que deu para formar alguma opinião? Não? Azar, porque eu já não agüento mais e vou escrever agora as últimas linhas sobre o assunto. Cuidado, que lá vem pedra!
Só a hipocrisia social obriga as pessoas a um comportamento humilde, a grande massa da humanidade é vassala e, portanto, induzida a uma conduta plácida e cordata. É justamente por isso que os comportamentos ditos narcísicos, como autoconfiança, segurança e determinação, são passíveis de serem considerados pelo sistema como nocivos ao meio.
Não pode ser verdade, a beleza, assim como outros dons, é a emanação da energia interior e, conseqüentemente, irreprimível. Portanto, meus amores, assumam e realizem sem medo o seu narciso, pois só assim poderão concluir que a felicidade não está no reflexo da própria fantasia ou ideal e conscientizem-se de que só o contraste oferece aquele algo mais.

Não posso me esquecer de citar a sábia e célebre cantora lírica das histórias de Tintin, Castafiore: "Chego a rir de me ver tão bela neste espelho".

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