quinta-feira, setembro 30, 2004

ERA UMA VEZ...

Por Guilherme Isnard - HV nº2 junho/julho 1986

E o sapo se não disse pensou:
- Numa época menos sofisticada sexualmente
um simples beijo quebraria o encanto e me faria voltar a ser príncipe, no entanto hoje, preciso mesmo é de uma boa f...

Era uma vez...Nestes dias de emancipações sociais e sexuais, relativa democratização de direitos e de sacrifícios econômicos, somos amiúde obrigados a deglutir um ou outro batráquio mais fornido. Triste sina! Não fosse a chance de contarmos com um Sapaim a postos no Alto (ou seria baixo?) Xingu. Sem dúvida um poderoso anti-vudu contra qualquer dendrobata mais renitente que teime descer-nos goela adentro.

Um único senão seria capaz de empanar o brilho dessa rara e miraculosa intervenção da cultura indígena no meio urbano: A provável escassez total da matéria-prima necessária às ditas "pajelanças". Exorcismos "sapais", conforme visto em cadeia global, exigem erva abundante e de especial qualidade, o que é exatamente o oposto da atual situação de mercado, quadro atípico que esperamos ser passageiro. Queria só ver pajé se virando pra apertar um "charo" daquele tamanho com essa palha que está rolando por aí. O brasileiro coitado, parece à mercê da peçonha de cobras e lagartos por absoluta falta de antídotos... Simplesmente absurdo.

Pretendemos acima ter feito uma atualização da interação homem-natureza, no que diz respeito às conseqüências do convívio forçado com os seres de sangue frio entre os quais, na opinião categorizada de Jung, a rã seria o que mais se aproxima anatomicamente do homem. Essa estranha coincidência reporta ao real objeto de nossa humilde análise: O sapo, enquanto identidade secreta de super-herói.

Então recapitulando: Sapos são úmidos, gosmentos e (hirk!) viscosos. Normalmente só servem pra fumar até explodir ou então amanhecer (para alegria da criançada) boiando mortos na piscina. Isso sem falar é claro, das minuciosas dissecações ginasiais (pronto, agora os politicamente corretos e mal-humorados vão me linchar). Acontece que por obra de um especial sortilégio, podem esconder sob sua nojenta aparência o maravilhoso e disputado (a unhas) "Mancebo do Corcel Branco", o que obriga as castas donzelas a superar o asco inicial e submeterem-se a beijar (argh!) ternamente a bocarra dessa coisinha horrorosa e pestilenta esperando assim quebrar heroicamente o encanto de seu brioso prometido.

Pobres vítimas de uma circunstância trágica se não fosse cômica. Os antigos, com os rodeios de sua habitual sabedoria, parecem ter imaginado adiantar, ambientado na Idade Média, o conceito de que as delicadas mocinhas tinham de "gastar o beiço" com muito sapão convicto até encontrar um, cansado da boêmia, disposto a conversão à nobreza e todo o cerimonial que isso implica.

Cá entre nós, a velha e boa bruxa má bem podia ter deixado um anel com brasão, uma coroinha, alguma dica de um resquício da realeza dessas repulsivas criaturas, que poupasse essa verdadeira roleta-russa às incautas e ansiosas pretendentes.

Parece que só pra piorar um pouco essa belezinha de situação, alguns batráquios contemporâneos, invejosos dos colegas elefantes, resolveram instituir prendas mais consistentes do que o já popularizado ósculo. Afinal (reclamam eles), sapo também tem direito a pós-modernidade romântica, que papo é esse de beijinho no limiar da pan-sexualidade cosmopoligâmica? Em outras palavras: pode ir abaixando as calcinhas sweetheart, que eu já te mostro o cetro. Que papel!

Profundamente constrangidas pela inédita e explícita exigência, as ingênuas moçoilas que antes sacrificavam apenas inocentes bicotas na busca da sorte grande, agora são inapelavelmente coagidas a entregar o "trunfo" logo de cara. Esquecer da Jovem-Guarda ("...estou guardando o que há de bom em mim...") e soltar a franga, comprando no escuro muito gato por lebre, se entregando a lobos em pele de cordeiro, até finalmente flagrar seu sapo outrora príncipe e, como reza a lenda, ser incrivelmente feliz para todo o sempre.

O desgastado jargão "ou dá ou desce" aparece resgatado e supervalorizado nesse novo "games frogs play", todos os riscos por sua própria conta. Nada de original. Na ótica desses girinos taludos, a regra básica é: dê agora e reclame jamais! Nem sonhar com aquela estória da satisfação garantida ou...

É realmente muito triste ter de encarar essa barra de ser tão intimamente checada e apostar tudo por um sonho no escuro e depois descobrir um príncipe (ex-anuro) com o coração trancado e impermeável a qualquer "Abre-te Sésamo". Nesse caso meu amor, a única solução é correr até a xangozeira mais próxima, acender uma vela e tomar uns passes com pepsamar, porque esse especial batráquio após engolido, torna-se terrivelmente indigesto, ocasionando dolorosas e permanentes seqüelas emocionais.

Como você pode ver, o azar é unicamente seu se depois de anos tentando converter um baita sapão cascudo que prometia (a seus olhos) castelos no ar, descobrir frustrada que quem está virando rã é você. Acorde enquanto é tempo e nunca mais esqueça: seja sedutoramente bela, porém jamais adormecida.

Seria fácil, se não fosse imundamente machista, reconhecer aos garbosos príncipes latentes o direito à rigorosa seleção de suas futuras e (sem esquecer Vinícius) eternas partners. Afinal, a condição "sapal" proporciona uma vida folgazã de penumbra e água fresca, cantando à beira do rio quando faz frio em alegre e coletivo coaxar, tendo aparentemente como única missão na vida esticar vez em quando a língua e pescar uma suculenta mosquinha em despreocupado vôo, cuidando somente de não abrir demais a bocarra e ficar barrado no baile do céu. Quem troca essa moleza por um insosso beijo e assume essa loucura de prisões na torre, dragões flamejantes e bárbaros invasores (abro parênteses com o intuito de novamente elogiar as sábias metáforas para o lar, sogras e cobiçosos de princesas alheias) ou é louco ou tem realmente o tal sangue azul nas veias, sonhando por capricho com um sistema cardiovascular calafetado.

Somente a título de fidelidade histórica, lembro ainda da categoria dos fetichistas alquímicos. Desses, alguns costumam sair toda noite madrugada afora, com um ridículo sapatinho de cristal debaixo do manto, dispostos a experimentá-lo em todos os pezinhos de possíveis Cinderelas. O único perigo que aí reside é o de que depois da meia-noite, qualquer mortadela vira presunto, ou seria abóbora?

Outros vivem acariciando a cabecinha da pomba na expectativa de descobrir alguma "saliência" que denuncie a cabeça de um alfinete que, retirado, revele uma ninfa encantada. Algo assim como o pino de uma granada. Pobrezinhos, esses vivem caindo nos "contos da fada" que poderia ser uma prima, mas não passa de uma infame rima.

Finalizando em estilo shakespeariano: Sapo ou príncipe? Eis a questão!

Questione, mas enquanto isso... na pior das hipóteses, relaxe. Mas com dignidade, tenha sempre em mente a sua privilegiada condição de pré-princesa e lembre-se: Gata sempre, borralheira nem pensar!


Nenhum comentário: