As histórias mudam um pouco, mas é tudo o mesmo sonho. O agente catalisador das relações continua sendo o amor. Não a palavra, mas o sentido. O fato é que a vida opera sem anestesia.
Do começo dos tempos até quase a metade do século XX, a relação mestre/pupilo era explícita e muito comum: Um homem possuidor de um especial talento ou conhecer deveria cuidar de que ao terminar-se tivesse a certeza de haver perpetuado o próprio espírito em gerações que o sucederiam, propalando e aperfeiçoando aquele seu "saber".
A sociedade, reestruturando-se no pós-guerra, impôs ao indivíduo um ritmo tal de competitividade que praticamente o convenceu de que a humildade do "aprender" era uma fraqueza passível de ser explorada como tal por qualquer pessoa a quem ele confessasse ingenuamente sua ignorância. Salve-se-quem-puder foi a única coisa que aprenderam então. Até aí, o homem maduro transmitia sua especialidade a um/a jovem aprendiz sob uma aura de honesta, profunda e leal amizade. Hoje a história é bem outra.
No mundo do tele-catch moderno!
Os historiadores estão preocupadíssimos em detectar os primeiros sintomas que permitiriam supor uma próxima onda. Todos especulam qual será o movimento seguinte, o que vai alterar agora os hábitos, normas, padrões e costumes. Afinal, o que vem depois do pós-moderno?!?!
Mesmo parecendo reacionário eu ousaria arriscar, na condição de leigo, que o pós-moderno não passou de uma overdose leviana do moderno, espécie de porre atípico das vanguardas que, refeitas da conseqüente ressaca, voltariam ao labor de desbravar insanamente a modernidade, essa esfinge que persiste em nos desafiar com uma multidão de misteriosas possibilidades. Temeroso de haver abusado de vosso tempo e paciência, descuIpo-me pelo desvio, por um momento deixei-me levar peIas emanações do incenso.
En garde! Touché!
No mundo do telecatch moderno (agora sim, faz sentido) os sentimentos elevados parecem as camisetas suadas que os boxeadores se apressam a despir antes do primeiro round. A confiança perde lugar para a guarda fechada e o jab rápido. Nesses tempos de prontidão, o aprendizado não mais se processa naquela esfera romântica, o mestre passa a ser um adversário a sobrepujar. Vale chute no saco, tesoura voadora, takles e o escambau. Até o proibido soco inglês é tolerado na tentativa de subjugar quem "sabe" e que por essa qualidade, ilusoriamente, "é" ou "pode" mais.
A subversão a este estado de coisas existe nas poucas amizades sinceras e reside basicamente num tipo singular de afeição e cumplicidade, vulgarmente conhecido por amor. Para seu governo, o bom e velho amor continua sendo o agente mais eficaz na polinização do saber, portanto fundamental como catalisador das relações filho/pai, homem/mulher, aluno/professor, humanos/Deus. Acontece, não sei se por obra do Plano Cruzado, que o amor sumiu do mercado e, ao que parece, a maior associação contra a possível extinção desta rara casta de sentimento é a paternidade. .
O amor é a subversão.
O tráfego inversamente proporcional de amor entre os pais e seus filhos costuma superar qualquer terremoto cultural. O bicho homem preserva e protege como uma fera a sua cria, até que a julgue apta a enfrentar a "selva". Metáforas à parte, há milênios que a pseudo-imortalidade do indivíduo se realiza no sucesso e na sobrevivência do seu próprio sangue, os filhos que concretizam os sonhos e expectativas paternas, e assim por diante. Preste bem atenção, este é um "micro" que curiosamente espelha o "mega", Deus e sua esperança na continuidade da espécie humana.
Filhos são aprendizes naturais. Antenas parabólicas a quem o mundo parece sem limites. As seduções se multiplicam nas telas de TV. No meu ninho ou meio como queiram, o convívio com a realidade da espécie era restrito a uma ridícula amostragem da população mundial. Aproximadamente trezentas pessoas entre parentes, colegas de estudos e amigos de folguedos. Hoje o meu pequeno Daniel senta em frente ao vídeo, liga um botão e o meio dele é o mundo inteiro. Nada menos do que isto. Como é que eu, mero pai sem os poderes de Greyskull, vou organizar toda essa zona na cabeça da criança? Help!
Tiro ao alvo ou solfejo?
E olhe que comecei super bem, fiz esse moleque com muito amor. O parto (método Leboyer na Clínica Tobias) quem fez também fui eu. Orientado por um obstetra, cortei o cordão umbilical, aspirei todas as melecas e o acariciei muito enquanto ele se acostumava com a novidade, deitado de bruços na barriga da mãe. Mas e daí para frente, como faz? Na falta de uma escola para jovens pais, fui estudar na vida o melhor jeito de preparar o "meu garoto". Seis anos depois estou vivendo a crise de estar completamente assombrado com o rumo das coisas, com o desrespeito por tudo e por todos que parece ser a máxima do homem moderno. Para que serve tanto desamor?
Você já viu bundinha de recém-nascido? Parece uma ameixa seca cor-de-rosa e enrugadinha, dá uma grande vontade de morder, mas o tempo voa e agora eu sei... O baixinho está virando um grandão e o que é que eu vou ensinar para esse meu filho? Será que acabo com as ilusões infantis de amor e paz? Será que o matriculo numa academia de caratê em vez de levá-lo para ver Fantasia? Será que um programa de treinamento em táticas de guerrilha urbana não serão mais útil do que arcaicos conceitos morais? E os nobres códigos de conduta? O bom caráter? A generosidade? A retidão? Afinal, quem vai ganhar, o bem ou o mal?
Sobreviver à vida.
Eu, com a responsabilidade de pai, morro de medo de estar criando com amor e doçura, ensinando integridade e bondade, uma criança que pode estar destinada a viver num mundo onde resolve a parada quem sacar mais rápido uma arma mortal. Eu não sei bem por que, mas os anos passam e todo o lixo fica cada vez mais evidente. Tomara que não seja porque estamos todos apodrecendo.
Ainda é tempo! O meu Daniel merece um planeta bem melhor do que este, todos os filhos merecem. Quem sabe talvez um esforço concentrado resolvesse o problema. Sei lá, a gente podia todos juntos na Terra inteira, gritar socorro bem alto, cada um em sua língua, humilde e fervorosamente num só fôlego. Que tal?
Só torço para que o remédio não seja outro dilúvio, mas se for tudo bem, eu me resigno. Deus é o único que parece saber o que faz. Diante Dele, tolinhos somos todos nós: Mestres e alunos, pais e filhos, maridos e esposas, crentes e ateus. Apenas jovens e boquiabertos aprendizes.

Os feios que me perdoem, mas só não se atrai irresistivelmente pelo espelho quem experimenta profundo desprazer ao se lembrar do reflexo. Assim mesmo, somente em casos de desesperadora fealdade, porque essa maravilha de adaptação que é o ser humano é capaz de encontrar ângulos favoráveis em qualquer Demoiselle D'Avignon.
Nestes dias de emancipações sociais e sexuais, relativa democratização de direitos e de sacrifícios econômicos, somos amiúde obrigados a deglutir um ou outro batráquio mais fornido. Triste sina! Não fosse a chance de contarmos com um Sapaim a postos no Alto (ou seria baixo?) Xingu. Sem dúvida um poderoso anti-vudu contra qualquer dendrobata mais renitente que teime descer-nos goela adentro.
O bissexualismo e você.


